Ancelmo Portela (poetaportela)

                                                              o sonho me faz poeta; o amor me sacia.

Textos


O brinquedo que não tive


Nasci em meio a Severinos, Marias e Joões. Em meio a mandacarus, xique-xiques e aveloz.
Nasci em meio a rezas, benditos e ladainhas. Rezadeiras, promessas, ossadas, resignação. Ali naquele Brasil sem nome, pedaço esquecido do Universo. Nasci ali, entre repentes e violas.
Matuto do pé-da-serra. Beradeiro, desprovido de beleza e intelecto.
Aos doze anos, fui levado para a capital, arrastado pela mão do destino. Fui morar em casa da dona Eulália, senhora de posses medianas e educação refinada. Ali deveria aprender os costumes, os bons modos, o viver na capital. Levei comigo, dentro de uma mala de couro, toda a lembrança de um pedaço de vida sertaneja. A mala surrada ia abarrotada de sonhos,expectativas e saudades. Saudades de muitas coisas, até de coisas que nunca tive. Brinquedos que nunca ganhara, mas que, com certeza, agora, o destino providenciaria para mim.
Natal. Luzes. Muitas luzes. Esperança e a certeza da concretização de um sonho. Um brinquedo de verdade. Não aqueles chifres de cabras, aqueles sabugos de milho, aquele corrupios de cacos de cuia produzidos por nós mesmos, já que nossa realidade não permitia que ultrapassássemos o limite de determinados sonhos. Não! Um brinquedo de verdade!
Certamente que havia alguém do tão grande mundo de meu Deus encarregado por essa distribuição eqüitativa de alegria. É lógico que isso não poderia acontecer naquele sertão; lugar propício apenas à criação de mocós e preás. Nada mais!
O grande dia. Dia da reparação das coisas que pareciam não ter jeito. Natal. Noite de Natal.
O menino feio, encabulado, querendo se ajeitar por ali, se encolhendo todo procurando o seu lugar no mundo. Mais precisamente, junto a uma árvore engravidada de presentes.
Aquele jardim crescera de repente, tomara as dimensões do universo. Caixas de vários tamanhos, formatos e cores, todas elas embrulhadas com papel de presente. Que maravilha!
Um velho, de barba branca, barrigudo, a lembrar os coronéis do antigo sertão, todo vestido de vermelho, irrompeu no meio da criançada, com voz rouca, bradando: rô, rô rô...
- Papaaaaaai Noeeeel – um coro só, gritou em uníssono a gurizada.
Metade de mim já havia calculado, quase adivinhado, o que existia em cada caixa daquela. Enquanto isso, a outra metade de mim já distribuía cada invólucro de felicidade daqueles. Claro, a mim me tocaria um dos mais bonitos. O mais valioso, afinal era um chegante ali. Merecia o melhor presente daquela noite de Natal. Um carro, talvez. Ou uma bola de futebol de verdade! Ah! Uma bola de verdade, e olhava para os dedos médios dos pés que carregavam as marcas das topadas, resultado do jogo com a velha bola de meia, lá da roça.
- Nicolau, Jansen, Eriberto, Edson, Lucas, Robson, Rubens – ia chamando o bondoso velho de barba branca e entregando a cada um o seu presente, com um abraço caloroso. Aí continuava a sinfonia. Música para os meus ouvidos. Até deliciava-me com a demora. A espera não me era de todo ruim. E, encabulado, saboreava aquele momento. A hora da chamada: “Cadê o Adalberto, aquele menino novato? Venha cá, meu filho...”
- Kleber, Ramiro, Gustavo, Renato....
Acordei do torpor. Olhei a árvore, já desenfeitada. Não havia mais caixas, não havia bolas. Não mais havia presentes...apenas luzes que piscavam... Não havia mais esperança. Até o ro, ro, ro sumira. Só escutava a algazarra da meninada. Só sentia um grande vazio dentro de mim e uma lágrima cruel a rolar em meu rosto. Um grito alto tirou-me daquele estado quase catatônico.
- Matuuuto, matuuuuto...cadê o teu presente? Risos, galhofa. – Era o Luquinha, um capetinha em forma de gente. Sobrinho da Dona Eulália, e novamente: Matutuuuto, matutimmmm, cadê o teu presente, moleque Betim?
Um pisão forte na boca do estômago do Luquinha levou-o ao chão, sem fôlego. e calou de repente toda a algazarra. Olhares atônitos, reprovadores. Comentários maldosos.
“Nossa, que terrível... que mal caráter...cabra do sertão...
Luquinha fora socorrido pela tia, estava fora de perigo...
Dona Eulália olhou-me apenas. Não disse nada. Nem era preciso. Nada disse, embora tenha dito bastante. Foi ali que, pela primeira vez descobri o pensamento de alguém; viajei pelo eu do outro; foi ali que calou-se em mim o meu sorriso; emudeceu o meu canto. Foi ali que surgiu esta crosta em meu coração, a qual impede a entrada da alegria, só permitindo a emissão de lágrimas com sabor de fel. Ali provei a amargura da vida. A desumanidade do ser humano. A seiva verdejante da esperança murchara; Secara o verdor infantil. A partir dali aprendi a decifrar a natureza humana.
E o menino fez-se homem. Amargurado.
Vez por outra, ainda me vem à mente a lembrança daquele belo presente de natal que nunca tive.



ancelmo portela (poetaportela)
Enviado por ancelmo portela (poetaportela) em 22/06/2009
Alterado em 07/12/2009


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